Sobre a morte…
Não! Nunca pensei que fosse morrer.
O meu relato aqui vai contar experiências intensas que chegam em minha mente como um flash em alguns momentos. Lembranças que trato de esconder numa gaveta secreta aqui dentro.
Tá! Vou ser bem explícita e contar detalhes dolorosos para mim. Se você não está muito bem, lê algum outro texto aqui do blog, de preferência que seja mais “pra cima”. Tem váááááários!
Em 2012 me internei num hospital público e com 24 anos, me vi sozinha num quarto com mais 5 leitos. Minha cama ficava perto de um janelão e fazia frio. Estávamos em julho, tinha acabado de reunir amigos no meu aniversário e aproveitei a oportunidade para contar que estava com câncer.
Mais algumas semanas e eu estava com pessoas estranhas dividindo um quarto que não tinha nada de bonito e a parte de “humanizado” era dada pelos profissionais que com muito esforço e poucos recurso, nos brindavam atendimento, cuidados e alguns sorrisos.
Olhei aquelas pessoas e logo identifiquei a que parecia mais grave. Aquela moça da cama do canto tinha muitos tumores pelo rosto e estava imóvel, a não ser pelos gemidos que faziam seu peito se mexer e beliscavam a minha alma de angústia.
Eu iria me operar no dia seguinte e não deixavam nenhum familiar passar a noite ali, ainda que fosse naquela cadeira dura e quebrada. Então, me preparei para ficar quietinha e esperar o tempo passar, até ficar de noite e adormecer.
Às vezes nos falávamos e contávamos alguma parte feliz da nossa história, mas em seguida abríamos nossa alma e explicávamos uns aos outros sobre nossas próprias doenças.
A moça do canto seguia gemendo e me dei conta que haviam bandejas de comida intocadas, acumuladas na estrutura do pé de sua cama. A senhorinha do meu lado notou que eu observava e contou que a moça estava há alguns dias naquele leito, e ninguém ia visitá-la. Não conseguia comer, pois era nítido que estava sofrendo e com dores.
Como um anjo, apareceu naquele momento, uma enfermeira daquelas arretadas, mas carinhosas e alimentou a pobre mulher. A pegou em seus braços e passando pelos tumores conseguia achar a boca e pousar ali um bocado de comida.
Cumprida a primeira missão, limpou a moça que havia sujado a fralda descartável. Trocou seus lençóis e a vestiu com uma nova camisola. E eu ali, olhando e querendo abraçar a enfermeira.
Fiquei mais tranquila e comecei a pegar no sono. Afinal, às 06h da manhã viriam me buscar para o centro cirúrgico. Lembro-me de rezar muito, muito, mas muito. Não por mim, mas por aquela mulher que sofria a olho nu.
Devo ter adormecido por 5 minutos, quando acordo com gritos e gemidos. Todos no quarto gritavam. A moça estava morrendo. Começaram a chegar mais e mais enfermeiros e um subiu em cima dela e fazia massagem cardíaca. A senhora ao meu lado rezava alto e entoava cânticos. Parecia uma trilha sonora fúnebre que tomava conta do nosso quarto compartilhado.
Mais massagem cardíaca, mais enfermeiros, mais gritos, mais cânticos. Olhava o rosto dela, olhava o enfermeiro em cima dela, olhava o quarto e parecia tudo sombrio. Mais massagem cardíaca, mais enfermeiros, mais gritos, mais cânticos.
Quando alguém entrou e colocou um biombo, ainda consegui ver a cabeça do enfermeiro, que agora aplicava um desfibrilador. Aquela máquina aparentemente fazia ela saltar, mas nada mais podia ser feito. Ela tinha morrido!
Passei a noite em modo automático e fui confiante para minha cirurgia. Acordei zonza, vi meu familiares que já ocupavam bastante do espaço perto da janela e percebi que a cama do canto estava vazia. Ainda estava grogue, mas já recebia as boas notícias da retirada do quadrante.
Alguns anos se passaram. Sete para ser exata. Chorei a morte daquela mulher como se fosse hoje. Passei dias despejando tudo que estava dentro daquela gaveta. A terapeuta ajudou a abrir, imagino que estava emperrada sabe se lá porque. Solucei e senti um peso sair do meu peito. Podem se passar anos, mas sei que ainda vamos ir liberando muito dos nossos traumas ocultos e presos. A doença não foi só a doença.
Não pude ser fraca naquele dia, pois minha mente mandou algum comando que me deixou em modo automático e assisti a tudo aquilo e ainda enfrentei minha própria luta sozinha naquele momento.
Não sei como fui confiante, não sei como lidei com aquilo. Não sei como além de lidar com um câncer, ainda lidei com tanto sofrimento ao meu redor.
Mas sei que lidar com a morte é uma consequência da vida.
Nunca pensei que iria morrer, viver tem sido intenso demais 🙏🏻